Estou começando uma nova série de artigos para falar de ambientação das histórias. É comum o uso do termo worldbuilding quando falamos da construção de ambientação. A expressão significa literalmente “construindo mundos”.
Essa empreitada vale a pena?
Nossa, sério isso, construir mundos inteiros?
Bem, em alguns casos, sim. Especialmente se estivermos falando de histórias de fantasia ou ficção científica que lidam com outros mundos diferentes do nosso: o Planeta Terra. Ainda assim, vale lembrar que mesmo as maiores franquias de ficção como Guerra nas Estrelas, Jornadas nas Estrelas, O Senhor dos Anéis, Harry Potter, etc, realmente NÃO conseguem criar mundos de verdade, e em seus mínimos detalhes. Na verdade, reutilizam parte do que já existe em nosso próprio mundo. Fazer um mundo realmente “do zero” é quase impossível de se fazer.
Mesmo se estivermos pensando em ficção histórica, muitas vezes, não teremos registros suficientes para saber, de verdade, como as coisas funcionavam, nos mínimos detalhes, em todas as épocas e lugares de nosso próprio mundo. Mesmo se você for escrever uma história sobre o presente, isso não é viável.
Dito isso, relaxe e comece a criar.
Pode até ser divertido (e tentador) criar mundos por si só, mas isso não deve ser nosso foco.
Ambientação em função dos personagens e da trama
Muitas vezes, no contexto de jogos eletrônicos ou mesmo jogos de RPG pode existir esse trabalho da criação de coisas do mundo, qual é o planeta, sua composição atmosférica, sua geografia, os mapas, a vida ali presente, culturas, povos, suas histórias, magia, etc. Mas toda essa criação tem um propósito principal: apoiar o desenvolvimento das tramas e seus personagens. Toda história vem para nós através de personagens que estão em ação e da subsequente trama criada. A ambientação vem no sentido de servi-los.
Exemplo de criação de mundo
Enfim, para começar nossa exploração desse tema, quero dar um exemplo de worldbuilding baseado em minha própria infância. Penso que o que mais importa quando falamos na criação dos mundos são os detalhes do comum e do cotidiano. E isso vai estar presente nas boas histórias. Vamos começar a viagem do worldbuilding aqui bem perto, no nosso próprio mundo.
Desde que me lembro, minha família passava as férias de verão numa pequena vila de pescadores localizada no extremo da Ilha de Itaparica, localizada na Baia de Todos os Santos, próximo a Salvador – BA. O nome dessa vila é Cacha Pregos.
Não quero falar da Cacha Pregos contemporânea, mas a Cacha Pregos de 1980 a 1985. Para chegar lá, era necessário pegar uma balsa que os locais chamam de Ferry Boat, na qual seu carro vai nos andares de baixo enquanto os passageiros vão na “parte de cima”. Depois disso, seguir cerca de uma hora por estrada de asfalto e terra, em geral, em condições precárias. Era um lugar bastante isolado e antes do transporte por estradas, chegava-se lá apenas de barco. Uma viagem longa a partir de Salvador.
Cacha Pregos tinha apenas três ruas principais e alguns becos. A rua da praia, do meio e a do porto. A casa da minha família ficava em um desses becos. Imagino que não tinha mais que trezentos habitantes naquela época. Não tinha eletricidade, água encanada, internet, bem, quase nada… A própria coleta de lixo era feita apenas uma vez por semana, o que deu origem ao meu esporte favorito: matar moscas com elásticos todos os dias depois do almoço. As moscas estavam sempre presentes, em toda a parte, mas isso era um incômodo menor, visto que era possível aproveitar de praias lindas, sair para pescar, ou passear no barco de pesca do tio do meu pai.
A rua do porto dava para o mangue, um lugar que ficava seco durante a maré baixa e no qual podíamos explorar, enfiando os pés na lama e caçar caranguejos ou pequenos mariscos que chamávamos de chumbinho.
As crianças locais não tinham sapatos e eu e meus irmãos, andávamos por toda a parte descalços também. Havia muitos gatos e cachorros vadios. As vezes pegávamos algum filhote para criar e sofríamos muito ao ter que deixá-los para trás no final do veraneio. As ruas não tinham pavimento. E nós víamos o telejornal todos os dias às 8 horas, quando meu pai ligava uma pequena TV preto e branco na bateria do carro.
Para obter água para banho e lavar louças, todos da casa participavam de um revezamento no qual bombeávamos manualmente a água salobra de um poço para a caixa d’água da casa. O banho era frio, então, quando deixávamos para tomar banho a noite, o jeito era esquentar um pouco de água na panela e tomar banho de caneco.
À noite, acendíamos lampião a querosene e jogávamos baralho ou dominó. Fazíamos isso também no nosso quintal que era imenso. Não havia muros e Cacha Pregos e todas as casas vizinhas eram separadas por cercas simples, de tocos de madeira. Isso fazia com que galinhas e outros animais circulassem livremente entre as casas.
De dia era sair cedinho para pescar numa região distante. Eu gostava de pescar siris com barbante, pelancas de carne, pedaços de telha, e uma redinha chamada jererê. Era só jogar a isca no raso que logo apareciam meia dúzia dos bichos para comer. Era fácil tirá-los e colocar num cesto. Pegava facilmente 20 a 40 bichos todos os dias. Que eram cozidos vivos (credo! não gosto nem de lembrar dessa parte!) e comidos na hora do almoço, junto com muitas outros frutos do mar que os pescadores locais sempre vendiam para minha família. Peixes, lagostas, camarões, etc. Era um tempo de fartura, hoje em dia, já não se tem tanta pesca artesanal e a quantidade também diminuiu muito. A vila tinha apenas três pequenas vendas e não havia muitos produtos por lá. Mas não faltava Coca-Cola em embalagens de vidro de 1 litro, balas e farinha.
Nos quintais havia árvores imensas, boas de escalar. E frutas para comer do pé: goiabas, mangas, cajás, etc. E meus irmãos e primos sempre tinham diversas brincadeiras a fazer.
Água potável tínhamos que ir buscar, uma vez por quinzena em fontes na cidade histórica de Itaparica.
As casas eram todas muito simples. Você comprava coisas como cocada, geladinho, pastéis de banana, mingau de milho e tapioca, diretamente em cada um das casas dos moradores locais.
Outra coisa interessante eram as histórias contadas pelos próprios moradores. Me lembro bem de um pescador que havia perdido os dois braços e ficado cego devido a pescar com bombas: Sr. Arílio. Ele passava, todos os dias, em nossa casa e nós o recebíamos para café e biscoitos. Tirava o chapéu de palha com os tocos de braço ao sair para a rua, o colocava de volta. Ele contava histórias de todo o tipo, muitas assustadoras.
Muitas noites, todos colocavam cadeiras do lado de fora para observar as estrelas e papear. Meu avô, sabia muito de astronomia e também era fã de histórias de ficção científica e também de extraterrestres. Ouvi muito do conteúdo de livros como “Eram Deuses Astronautas” naquelas noites observando estrelas, a lua e estrelas cadentes.
Enfim, vamos parando aqui, pois eu poderia escrever um livro aqui facilmente. O que fiz aqui, foi um pouquinho de Worldbuiding de Cacha Pregos – BA. O lugar também poderia ser descrito assim: uma pequena vila de pescadores pitoresca com 300 habitantes que recebe alguns veranistas e FIM!
A ambientação se constrói através dos pequenos detalhes
O que quero destacar é que conhecer pequenos detalhes do cotidiano é algo a se pensar quando vamos criar a nossa ambientação. Provavelmente vocês acreditaram em tudo que eu descrevi e por quê? Isso vem dos pequenos detalhes. Qualquer um pode criar algo geral sobre uma vila de pescadores, mas os pequenos detalhes como caçar moscas, ver TV ligada na bateria do carro, o pescador aleijado, a pesca de siris, etc, somente alguém que esteve lá poderia descrever essas coisas.
Para criar um mundo crível, seja uma vila de pescadores ou um império galáctico, é preciso criar as coisas grandes assim como os pequenos detalhes. Pequenos pontos de veracidade para o leitor conseguir ver e acreditar.
Espero que tenham gostado! Ah, se ficaram curiosos sobre Cacha Pregos, escrevi um conto ambientado no local chamado A FEIRA E O FUTURO DA FICÇÃO, que integra a coletânea Contos Insólitos de Ficção (quase) Científica.
Essa coletânea tem sido bem avaliada pelos leitores na Amazon (12+ avaliações de cinco estrelas).
Próximo: Worldbuilding parte II – Abordagens
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