Este conto faz parte da coletânea Tempestade de Ficção #1. Foi escrito com base em palavras sorteadas aleatoriamente. Divirta-se!
Carlos Rocha
As lembranças em torno do transplante a assombravam. Antes de perder o corpo, nunca tinha se preocupado com o fato de ter um coração batendo dentro do peito. De ter sangue correndo em suas veias. Conviveu com todas as vantagens e desvantagens de se ter um corpo perfeito sem ao menos valorizar isso. O prazer de uma simples refeição, a sensação de um beijo, um abraço apertado e quentinho. Podia pagar um bom médico que aplicava as agulhas de acupuntura em seu corpo. Mas a medicina de seu povo não conseguiria salvá-la.
Depois do transplante, sua mente era a mesma, mas sua vida agora era como um pesadelo. Seus sensores lhe indicavam níveis de pressão na ponta dos dedos, um termômetro dizia se estava quente ou frio, e era uma preocupação constante o nível de carga de suas baterias. Viver a consciência, dentro de um corpo artificial, era algo estranho, alienígena. Ainda que tivesse um lado bom, não sentir fome, frio ou dor física.
Seu corpo, pesado, feito de pedra, com articulações de nogueira e latão, lambrecadas de graxa de hipodracos, movia-se de forma ruidosa e pesada. Sua alma estava amarrada naquilo e nem mesmo dormir e sonhar, ela podia. No lugar disso, para passar o tempo das madrugadas solitárias, rememorava o passado, numa espécie de sonho lúcido.
— Ela vai morrer! — sentenciou Hissimato. — O coração está parando.
Ela estava sedada, mas ouvia tudo o que diziam.
— Ela não pode morrer. Não sabendo tudo o que sabe. Nossa pesquisa… Pense em todo o trabalho que fizemos. Ela não pode morrer! — Rebateu Yang.
— É, mas vai — sentenciou o chefe.
— E se tentássemos um transplante? Nossos golens estão ficando cada vez mais perfeitos. Ela poderia continuar o trabalho no novo corpo.
— É… isso se o transplante funcionar. E também se ela não enlouquecer dentro daquela coisa.
— Não! Não! — Amira tentava gritar. — Me deixem morrer! Eu não quero virar um monstro! Me deixem morrer!
Mas seus gritos ecoavam apenas dentro de sua própria mente. O corpo, quase imóvel, apenas perdia temperatura na medida em que o metabolismo entrava em colapso.
— Eu não vou fazer isso — disse Hissimato. — Não é algo que eu iria querer para um inimigo.
— É? — Yang socou a mesa. — Mas eu não vou simplesmente deixar minha irmã morrer.
— Ela é parente sua, não minha. Com todo o respeito, pense melhor homem. Olhe bem para aquela coisa! Colocar as pessoas paralisadas, aleijadas ali, é uma coisa, mas a sua irmã sempre foi saudável, um espírito livre!
— Eu vou fazer o procedimento, e não precisa me ajudar se não quiser.
Amira sentira a mão quente de Hissamato envolver a sua. — Nos perdoe, Amira. Espero que nos perdoe.
O sol nasceu. Mais um dia iria começar. Mais de quatrocentos anos depois, Amira já não tinha mais a companhia de seu irmão, e nem do chefe do laboratório de alquimia, Hissamato. Muita coisa havia mudado. A guerra contra Kladis, que estourou anos depois de seu transplante, fez tudo mudar. Amira deixara as pesquisas de lado para se juntar a um pelotão de golens. O dinheiro que o reino investia nos alquimistas tinha que dar resultado, diziam os conselheiros. E nada como algumas dúzias de golens, quase indestrutíveis, com a força de vinte homens para virar o jogo numa guerra. Amira tornou-se uma general implacável e esmagou o Trono de Safira com as próprias mãos. Suas mãos, tão fortes, tão poderosas, depois da guerra vencida esmagaram o crânio de Hubbris, o monarca de Torrow. Alguém que ela deveria defender. Depois dele, matou ou aprisionou os demais nobres até que a monarquia ruiu. Amira destruiu os outros golens e se tornou imperatriz. Forte, inteligente, fria de sentimentos e imortal.
De vítima de um crime, passou à posição de assassina. Mas aquilo tudo tinha que ser feito. Não restava nenhuma outra opção lógica. Os reis mentiam, promoviam guerras fratricidas por pura ganância. Só pensavam em dinheiro e prazer. O prazer para Amira tornou-se uma outra coisa. Seu prazer era ser temida e obedecida. E através do temor que todos tinham dela, ela promoveu uma coisa que a sociedade não via há séculos: paz. Mas a paz só vivia fora dela, entre seus súditos, e jamais em seu interior.
Seu império prosperou por alguns séculos, oficiais de governo se acostumaram à nova ordem, sempre temendo desagradá-la, sempre temendo serem esmagados e sempre seguindo suas regras à risca. Ordenou que se construíssem escolas. Perseguiu e destruiu todos os templos. Ninguém deveria ser cultuado, nem mesmo a imperatriz. Construiu uma nova capital.
Sua mente viu gerações se sucederem e o progresso do conhecimento se firmar cada vez mais em todos os cantos. Viu as pessoas desenvolverem novas formas de lazer, como frequentar o teatro, ler livros de ficção, ir a concertos de música, praticar esportes, até que seu ofício perdeu sentido. Então, ela se enterrou numa caverna profunda, o antigo laboratório de alquimia e deixou em seu lugar uma réplica de seu corpo, que, de um dia para outro, ficou inerte.
As baterias acabaram! As baterias acabaram!
Diziam as manchetes dos jornais. O povo foi às ruas, houve festas e mais festas. Um novo sistema de governo surgiu. Porém, em menos de um século, voltaram os cultos, as disputas políticas e voltaram as guerras. As ervas daninhas cresceram rapidamente assim que a imperatriz deixou de podá-las.
Amira não tomou conhecimento de nada daquilo. Passou o resto de sua existência isolada, rememorando sua vida de carne e sua vida de pedra. Remoendo seus crimes num sonho lúcido, amargo e sem fim.
Sementes randômicas usadas para criar o texto:
Lembranças | Baterias | Transplante | Pesadelo | Nogueira | Safira | Pesquisa | Pagar | Acupuntura | Cativo
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