Como os demais contos da coletânea, foi criado a partir de palavras aleatórias. Palavras sorteadas:
Amuleto / Joaninha / Inseto / Verdor / Rabino / Marca /Internacional / Valor / Protestos.
T#17B5FF era um sujeito magro e de aparência doentia. A imprensa capturava, por holofilmagem, sua imagem apática, com olhos amarelados, postura corcunda e mãos cheias de calos. Seus cabelos eram ralos e oleosos, e sua pele tinha uma tonalidade verde e flácida. Sua telepresença era transmitida para milhões de ambientes virtuais ao redor do mundo, e as pessoas testemunhavam isso com horror. Ele recebeu o apelido de Tiff.
— Como o senhor se sente, Tiff?
As mãos de Tiff tremiam, como se ele estivesse ansioso para realizar tarefas ou segurar algo, como costumava fazer em sua função na fábrica.
— Estou em funcionamento, pronto para uma nova tarefa.
Era evidente que a diferença entre um ser humano e um robô era tênue.
— Como se sente ao não ter que trabalhar mais?
— Sinto-me bem quando estou desempenhando minhas funções. Ficar parado aqui, apenas falando, não é correto.
Enquanto a entrevista era transmitida, protestos estavam ocorrendo em todo o país. O valor de mercado da marca estava em queda livre. A Biomindware, a fabricante mais respeitada de biochips e wetware de interface neural do mundo, estava enfrentando uma crise sem precedentes.
Os vídeos que mostravam os campos de trabalho subterrâneos cheios dessas criaturas monstruosas eram chocantes. Eram tão monstruosos que inspiravam pena. O verdor de suas peles e o amarelo doentio de seus olhos desprovidos de emoção lhes renderam o apelido de “zumbis”. Que outras megacorporações estariam usando exércitos de mutantes sub-humanos aprisionados nessas malditas fábricas?
Durante um stream com mais de 12 milhões de espectadores, um respeitado rabino fez um discurso em rede nacional: “Nunca vimos algo tão escandaloso desde o Holocausto, quase dois séculos atrás”.
Nas ruas, protestos contra a Biomindware exigiam justiça para aquelas pobres criaturas. “HappyChip, já! HappyChip, já!”
Os mesmos biochips que impulsionavam a humanidade para a nova economia da hiperconectividade estavam sendo usados para escravizar uma raça inteira de mutantes que trabalhavam em condições piores do que as piores fazendas de proteína animal.
Denúncias apontando para mais cidades de trabalho ocultas, localizadas em antigas minas desativadas, continuavam surgindo.
Tiff evitava olhar nos olhos dos repórteres, mantendo seu olhar fixo na mesa à sua frente.
— Eu já posso retomar meu trabalho?
Um inseto pousou em seu rosto, mas ele não usou as mãos para espantá-lo. Apenas permitiu que ele caminhasse por ali por alguns instantes antes de voar novamente.
— Devo dizer, Clark, que estou chocada! — disse a âncora do holojornal, Bom Dia, Mundo.
— Isso é inaceitável, Martha. Vamos ouvir o que o Dr. Jonathan Shuster, especialista em biochips e wetware, tem a dizer. Bom dia, doutor. É verdade que essas pessoas tiveram sua vontade anulada pelos biochips?
O avatar do Dr. Shuster surgiu na sala, com uma representação hexelizada de si mesmo.
— Bom dia! Eles não têm sua vontade completamente anulada; na verdade, ela foi hackeada. Essas pobres pessoas apenas desejam trabalhar e sentir-se úteis. Mas vejam, muitos estão olhando para esse escândalo e me fazendo perguntas como: que tipo de chips eles usam? Será que existe alguma função de felicidade neles? Mas eu tenho outras perguntas: como algo assim foi capaz de acontecer? Como foi possível tamanha crueldade em uma escala tão grande? Como a declaração de ética corporativa da empresa pôde ser ignorada? Quem são os responsáveis por tudo isso?
— E o senhor tem alguma resposta para essas perguntas?
— Sim, em parte. Eu mesmo trabalhei para a Biomindware por cinco anos. Durante esse período, havia uma forte regulamentação, especialmente com relação ao departamento de ética, que era muito atuante. Conversei com alguns antigos colegas e descobri algo estarrecedor.
— Parece que temos um furo, Martha! — diversos personagens animados e objetos coloridos invadiram a sala, enquanto uma fanfarra soava, semelhante à comemoração de vitória numa fase de videogame.
— Parece que o problema surgiu do uso de IAs na tarefa de otimização de resultados da produção e programação dos chips. Sabemos que as IAs são utilizadas em diversas indústrias, mas, no caso da Biomindware, eu mesmo fui contra essa decisão. No entanto, nos garantiram que protocolos éticos seriam implementados nelas…
— Então, esses protocolos não foram implementados?
— Sim, mas surgiram brechas e, em algum momento, um departamento inteiro foi comprometido. Tanto as IAs quanto os engenheiros que estavam trabalhando tiveram suas diretrizes éticas inibidas.
— Isso soa muito estranho, Dr. Shuster. Podemos entender um defeito em um programa, mas como esse defeito pode ter afetado os engenheiros? Uma equipe inteira?
— Bem, isso ocorre quando todos estão confortáveis e acreditam que estão fazendo seu trabalho corretamente e com segurança. A questão é que, como sabemos, é comum na maioria das profissões que o wetware seja atualizado. E o que ocorreu é que a IA comprometida atualizou o wetware dos engenheiros.
— Está dizendo que a IA passou a controlar essas pessoas?
— Eu não diria que a IA as controlou. Suas vidas não foram modificadas de forma geral. A modificação ocorreu apenas no contexto do projeto de otimização de produtividade. E não foram apenas os engenheiros que foram afetados. Essas atualizações, vamos chamar de “vista-grossa”, acabaram sendo transmitidas para outros grupos dentro da organização, à medida que a IA que controlava o processo de aumento da produtividade identificava a necessidade.
— Isso é assustador! — interrompeu Martha, dramaticamente.
— De fato, mas não é uma prática incomum. Na verdade, muitas empresas atualizam as diretrizes corporativas no wetware de seus colaboradores.
— E isso vem acontecendo há quanto tempo, Dr. Shuster?
— Um momento, vou carregar os gráficos históricos.
Ele pegou seu amuleto em forma de joaninha e, dele, surgiu um gráfico tridimensional.
— Vocês podem ver aqui como o lucro da empresa cresceu a partir deste ponto, há seis anos.
— Eu não acredito em nada disso — disse Martha. — Não faz sentido! Por que essas fábricas com esses… mutantes? Não seria mais lógico otimizar a produção com robôs?
— Bem, existem tarefas para as quais os robôs são excelentes e outras para as quais não são tão adequados. Veja, os fatos comprovam a teoria. Eu não consigo explicar todo o contexto de otimização de produtividade, mas se não houvesse vantagens a serem exploradas nesses seres escravizados, por que essas fábricas existiriam?
— Certamente há muito a ser explicado, Dr. Shuster. — O avatar de Clark deu um sorriso perfeito. — Obrigado por sua participação. Nossa produção ainda não obteve respostas da Biomindware, mas certamente isso mudará as regras do jogo. A seguir, acompanhem os protestos por todo o hemisfério e uma mesa de especialistas que vai discutir o impacto político e econômico do escândalo dos “zumbis” da Biomindware.