Este conto faz parte da coletânea Tempestade de Ficção #1. Foi escrito com base em palavras sorteadas aleatoriamente. Divirta-se!
Carlos Rocha
— Livrai-me dessa tentação! Livrai-me dessa tentação! — repetia baixinho o rato-khelib com os olhos fixos na jóia vermelha incrustada no olho de Sith’el’hazar, a serpente-cíclope, deusa da boa sorte. A serpente era uma estátua de jade de doze metros coberta com escamas de ouro, enrolada na base do altar com longo pescoço se erguendo até quase tocar o teto alto do templo.
Seu pequeno estômago estava embrulhado e os pelos grossos e longos de seu bigode arrepiados. A cauda em riste, demonstrando total apreensão. O brilho do rubi das mil vidas refletido nos globos oculares pretos e pequenos do roedor antecipavam o êxtase daquele roubo. Seu nariz nervoso não parava de subir e descer, e sua boca encheu-se de saliva, como se estivesse prestes a comer uma porção generosa do firme e saboroso queijo de capa lilás produzido em Mirrethen. Minussim ficou sobre as duas patas traseiras, como faziam os humanos, e sacou da bolsa a tiracolo seu formão de aço escovado e o martelinho de borracha dura.
Minussim era pequeno para sua raça, não tinha mais que quarenta centímetros quando de pé. Sua pelagem preta era ótima para sumir no escuro e tinha o tamanho ideal para esgueirar-se por buracos e rachaduras. Suas patas fortes com unhas longas eram propícias para as mais difíceis escaladas. Seus primos grandes e gordos, de pelos brancos e olhos vermelhos, não teriam a menor chance de completar uma tarefa tão ousada.
Mas é claro, se qualquer coisa desse errado, seu destino era virar comida na mesa dos detestáveis saurimitas. Criminosos khelib eram especialmente apreciados fritos.
“Sempre há tempo para refazer o caminho e tomar uma escolha mais acertada” podia ouvir a voz melódica de seu tio Funiley aconselhando-o a desistir. Ele olhou lá para baixo, no canto, vendo o buraco que levou dias para escavar. Quando todo o projeto não passava de um esboço em sua mente, meses atrás, não imaginava que ele estaria ali, em plena madrugada no mais bem guardado dos templos de Hallan’ak’nassar, com as patas firmes sobre a cabeça da estátua, pronto para extrair seu prêmio.
Tio Funiley e sua mãe, Tíria, sempre foram ratos sossegados, afeitos ao trabalho honesto e aos bons costumes. Os avós de Minussim os criaram assim. Seu pai era de outra estirpe. Tinha o temperamento de um vulcão, coragem e raiva de sobra para distribuir ao mundo inteiro. O pai, que carregava a alcunha de Capa-gatos, era um rato-khelib marrom, enorme e forte. Um pirata que viajava o mundo dominando as gangues dos porões dos imensos navios dos homens. Minussim havia combinado em si a mansidão e calma do lado da família materna, e o ímpeto aventureiro e explorador de seu pai. Essa combinação, que muitas vezes o fazia hesitar ante alguma grande aventura, ante a um grande feito, estava dominando-o naquele momento. Ele encarou o rubi por três longos minutos, com o formão e martelo nas patas, sua vida inteira se passando dentro da mente. O tio e a mãe lhe dizendo para desistir e voltar, e o pai e seus amigos dizendo para ser ousado, único, excepcional, brilhante!
Minussim arfou resoluto, espantando a voz do tio de sua mente. Nada mais poderia quebrantar sua determinação. E então, ele começou a bater com toques amanteigados para que o formão penetrasse os cantinhos do encaixe sem arriscar provocar um arranhão sequer na valiosa jóia. Ele ficaria rico, e famoso. O mais famoso entre os ladrões de todo o mundo! Pouco a pouco, foi ganhando espaço no círculo de jade para finalmente remover o rubi.
O rato soprou com carinho o pó de jade e constatou — Pronto! Vai sair!
Guardou os instrumentos na bolsa e tirou uma pequena trena e um saquinho de veludo preto. Ele tinha que saber imediatamente! Sim, sim! Um círculo perfeito com cento e vinte e três milímetros de diâmetro! De longe, o maior rubi do mundo! Depois de medido, cobriu o topo com a boca do saco aveludado e gentilmente puxou a pedra para dentro. Amarrou a cordinha e sentiu o peso!
Que peso delicioso de se segurar!
Seus pelos se arrepiaram e guardou a pedra na bolsa. O navio zarparia dentro de uma hora, um pouco antes do templo abrir. Depois disso, eles nunca mais veriam o Yakut’alaf’al’araua.
Descer, buraco, túnel, navio, glória! Descer, buraco, túnel, navio, glória! Repetia aquelas palavras como um mantra enquanto descia cautelosamente pelo pescoço de Sith’el’hazar.
Seu tio Funiley nunca disse aquela frase, mas a consciência de Minussim costumava fazer soar em sua mente frases na voz do tio.
Sith’el’hazar é a deusa da boa sorte, mas roubar dela, vai trazer azar! Um azar nunca antes visto!
Então, uma escaminha de ouro se soltou, Minussim escorregou e caiu por três longos metros em cima do corpo da estátua no altar, rolando para baixo até que ao atingir o solo, o conteúdo todo de sua bolsa se esparramou, uma dúzia de quinquilharias, sua zarabatana e ferramentas tilintando no chão de pedra polida e rompendo o silêncio da madrugada. É claro que isto acordou a sentinela saurimita que cochilava na entrada do templo. Que pesadelo, todas suas coisas espalhadas! Mas o pior, o pesado rubi tinha deslizado pelo chão e quicou pelos degraus até chegar na parte mais baixa do templo, onde se reuniam os fiéis para cultuar Sith’el’hazar.
Quando Minussim tentou correr nas quatro patas até o rubi, sentiu que não suportava tocar o chão com a traseira direita. Então, mancou como pode, descendo os degraus.
— Ladrão! Ladrão! — gritou a sentinela ao erguer seu lampião e avistar o pequeno rato-khelib descendo os degraus. O guarda saurimita vestia apenas uma asadat’kufat, decorada com mini-pastilhas de cerâmica colorida. Uma peça de roupa saurimita que envolvia apenas os ombros, na qual se prendia um capuz que podia ser usado para evitar o sol forte sobre os olhos. De resto, tinha apenas um cinto frouxo no qual prendia a bainha de sua cimitarra. A pele escamosa e dura era tão boa quanto uma armadura leve dos humanos. Alguém com a força de Minussim não podia nem sonhar em ferir um saurimita sem um bom arco, zarabatana e setas de aço. E neste momento, a zarabatana do rato e suas setas envenenadas tinham ficado para trás, espalhadas no chão perto do altar.
Ele devia ter matado a sentinela enquanto estava dormindo, mas a voz de seu tio tinha lhe dito “tirar a vida de alguém inocente não é correto. E ademais, por que se arriscar? Qualquer erro pode ser fatal…”
Minussim pegou o saco com a gema. Aquele peso gostoso em suas dianteiras. Colocou de volta na bolsa e correu para um canto escuro. O guarda o perdeu por um instante, mas Minussim guinchou quando pisou com força demais depois de saltar para cima de um oratório na lateral do templo. O rato ergueu o focinho e farejou. Mais saurimitas estava a caminho. Saltou do oratório para a parte mais alta, gemendo mais uma vez na queda. O saurimita em sua cola, cimitarra erguida acima da cabeça.
— Vou te matar! Maldito rato! — sibilou.
Ignorando a dor o melhor que pôde, correu e saltou para dentro do buraco. A espada curva desceu zunindo e bateu no chão produzindo uma faísca. A pontinha da cauda de Minussim foi poupada por um triz.
Arfando, o rato percorreu o túnel, atento às vibrações do solo. Saurimitas já corriam por todo o lado à procura do ladrão. Seu plano, no entanto, era bom. E o novo túnel se ligava ao esgoto e o esgoto, é claro, seguia para as docas.
Alguns minutos depois, Minussim chegou ao porão, seu coração acelerado, as pernas latejando, mas vivo.
— Eu consegui… roubei o rubi! — anunciou.
— Conseguiu é seu titica!? — ralhou o pai. — A única coisa que você conseguiu foi ser visto! Olha só a confusão que está lá fora! Os malditos lagartos vão vasculhar cada milímetro desta cidade, todos os navios, incluindo o nosso! Você tem que sair com essa porcaria de rubi daqui agora! Senão estamos fritos! Literalmente…
A imagem de ratazanas criminosas sendo fritas vivas nas grandes tinas de óleo quente arrepiou os pelos do pequenino.
— Mas eu… nós podemos esconder…
— Eles vão usar a porra da bruxaria deles, moleque! Não está vendo? Um grupo deles já está vindo para cá — o pai apontou pela escotilha.
— Tá, tá, tá! — rugiu Minussim em resposta. — Eu já vou dar um jeito!
O rato subiu as escadas tão rápido quanto desceu e no convés do navio, foi até o outro lado. Tirou seu colete e roeu a costura para soltar uma tira de tecido. Tirou o rubi da bolsinha preta e o acariciou por alguns instantes.
— Adeus, precioso! — e beijou a pedra rubra.
Então, colocou o rubi na dobra da tira de tecido e girou-a veloz sobre a cabeça, improvisando uma funda. Atirou então a pedra que cintilou no ar atingida pelos primeiros raios do sol antes de mergulhar entre as marolas do mar.
Sementes randômicas usadas para criar o texto:
Tentação / Quebrantar / Queijo / Vulcão / Suspiro / Raiva / Arfada / Esboço / Hesitar / Estranho(a)
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