fbpx

O Código Élfico – Leonel Caldela

Código ÉlficoSanto Ossário, a cidade para onde todos voltam, uma pitoresca cidadezinha brasileira de interior, chega a ser um personagem na trama ousada delineada pelo autor em O Código Élfico. Digo ousada, por que não é todo dia que nos deparamos com a mesclagem de gêneros e temas que Leonel empreendeu para constituir este romance. Talvez a mais relevante seja a ideia de mesclar fantasia de origem estrangeira (no caso nórdica) num pano de fundo de brasilidade, algo que é possível encontrar na literatura de cordel, ou na série de Roberto Sousa Causo, a Saga de Tajarê. Mas o Código Élfico não se enquadraria no gênero borduna e feitiçaria, tampouco espada e magia. De algum modo, lembra uma das séries de Michael Moorcock, The Dreamthief’s Daughter, The Whitewolf’s Son e The Skraeling Tree. Nela, um dos personagem clássico de histórias de espada e magia, Elric visita a terra através de Ulric Von Bek, e por exemplo, há uma batalha entre uma revoada de dragões montados pelos lordes de Melninbonè contra esquadras de aviões da Luftwaffe durante a segunda guerra mundial. Em o Código Élfico, vemos elfos montados em grifos combatendo helicópteros Apache, Black Hawks e aviões bombardeiros.

A mesma vibe.

Aliás, definir o gênero do livro é um pouco desafiador, pois ele varia ao longo do livro. Em alguns momentos, predomina o horror, em outros, há uma pitada de sátira envolta no uso de meta linguagem de filmes e da própria ficção literária. Em outros, há um tom de narrativa oriental, zen-budismo e momentos “filosóficos”. Ali na esquina, estamos beirando o gênero de super-heróis, com socos que arremessam inimigos a vinte metros de distância e monges que provocam tufões arrasadores soprando automóveis e outras coisas. Há também uma pitada de fantasia e magia, aqui e ali, e mesclagem com alta tecnologia, engenharia genética e outros bichos. Sei lá, algo como salada fantástica horrorífica à brasileira. Ou talvez, simplesmente New Weird (mas confesso que entendo pouco deste gênero).

 Não foi um livro fácil de ler, pois durante quase todo desenrolar da trama algo ficava faltando para dar liga e transformar o livro num “virador de páginas” (aqueles que não conseguimos parar de virar as páginas). Não digo com isso que o livro seja ruim, na verdade, há muitos elementos nele que me agradaram. Vamos a eles.

 Os serial killers, cultistas e lendas urbanas. Um dos personagens chave da trama, Salomão Manzini, pai da protagonista, Nicole, é um Serial Killer e cultista. É uma das figuras mais interessantes do livro. Se sobressaindo em relação à figura que assume o papel de principal antagonista, Emanuel Montague. Este último, poderia ter tido um papel menor na trama e ser menos redundante em relação a Salomão. Penso que vilões tão maníacos e com papéis tão próximos na trama acabaram tirando força um do outro. Emanuel, por sua vez, foi retratado tão poderoso, tão bom em tudo, tão fodão, que acabou se mostrando um personagem um tanto inverossímil.

 A Rainha da Beleza e seus súditos fazendo papel da grande origem maléfica (como os seres inumanos das histórias de H.P. Lovecraft). Essa inversão de expectativas é uma boa sacada, mas alguns aspectos acabam gerando inconsistência na trama. Fica um pouco difícil de crer que os elfos, mesmo corrompidos, sejam tão cruéis e maléficos, na medida em que também são tidos como sábios, filósofos, ou algo do tipo.

 As brincadeiras com lendas urbanas e abduções. São legais para introduzir a protagonista e depois, seu fiel escudeiro, o agente de forças especiais, Felix Kowalsky. Também geram alguns momentos divertidos. Mas ao mesmo tempo, diminuem o grau de plausibilidade da trama. É verdade que todo bom romance precisa de ter algo de implausível, mas achei que a dose disto no romance foi um pouco elevada.

 Dinastia à busca do poder das trevas (beleza). A família Strauss e a Strauss S.A. constituem uma parte da trama interessante e enriquecem a caracterização de Santo Ossário.

 A origem de todos os mitos. A existência de Arcádia (mundo mágico dos elfos) como um elemento da pré-história da terra, é geradora de todos os mitos e linhas filosóficas do mundo real. Coisas como Ikebana, Zen-Budismo, Mitologia Nórdica, Quenya (língua élfica inventada por J.R.R. Tolkien), Artes Marciais Orientais, O Zen e a arte do arqueiro, enfim, qualquer coisa, de algum modo derivou de uma herança quase esquecida do tempo em que os elfos estiveram na terra, ou de alguma influência psíquica/mística que emana de Arcádia para a terra desde a separação. São sacadas legais, mas mais uma vez, acrescentam “furos” ou, pelo menos, questionamentos à lógica subjacente à trama. Dizendo de outro jeito, são coisas que me tiravam da história. Ao invés de estar envolvido e preocupado com o destino dos personagens, me via me perguntando: “como é? Isso faz sentido? Mas isso não contradiz aquela ideia?”

 O tempo fora do tempo. O tempo em Arcádia não funciona como o tempo na terra. O tempo de Astarte, o príncipe élfico, filho da Rainha da Beleza, mesmo na terra poderia ser distorcido, assim como ocorria com alguns lugares e pessoas (não elfos) que aprendiam o segredo do tempo fora do tempo.

 Doorgas Mano. O uso de drogas e estados alterados da mente geram interesse adicional em algumas passagens. O manicômio judicial também é uma locação de interesse que ficou bem caracterizada.

 A liga extraordinária (dos serial killers). A ideia é legal, mas  tantas coisas legais acabaram competindo entre si. Talvez o agrupamento de algumas destas ideias em diferentes romances poderia funcionar melhor, mas tudo junto e misturado gerou um pouco de confusão.

 Uso de enigmas, códigos para acessar o poder do oculto. É uma premissa legal e sustentou a trama de maneira adequada em sua primeira metade. Mas algo ocorre na segunda metade e o grau/lógica de poderes conquistados/conferidos fica um pouco confusa. Para explicar isso melhor, vou recorrer à primeira lei de Sanderson: “A habilidade do autor em resolver um conflito satisfatoriamente com magia é diretamente proporcional a quão bem o leitor entende a magia no contexto de sua obra”. Recorro a segunda lei também: “Os limites devem sobrepujar os poderes”. Muitas vezes os limites dos heróis e dos vilões em o Código Élfico, não foram bem trabalhados/delineados. Então, em alguns momentos predomina a sensação de que tudo pode, o velho Deus Ex Machima, pipocando aqui e ali para dar desfecho às questões.

 Locações. Algo que vale destacar é a caracterização de Santo Ossário, muito boa. Lembra muito a cidade de Gramado, para quem já foi lá, dá para se ver retornando. A Fortaleza da Memória, O Mosteiro e o Manicômio também são locações memoráveis.

 A liga dos zé ninguéns com o poder do coração (o poder é de vocês). Abel Montague, o delegado, o bêbado, a prostituta, etc imbuídos de poder da vontade mística me fizeram lembrar daquela cena desnecessária do terceiro Batman do Christopher Nolan em que uma turba de policiais corre contra uma turba de bandidos dando tiros uns nos outros. Quem sai correndo de peito aberto para tomar tiros assim? Só nas guerras com a certeza de que se você recuar vai ser fuzilado por deserção, ou algo do tipo.

 Deu para perceber que acompanhado dos elementos que gostei, vinham junto alguns que não foram tão legais. Afora estas questões técnicas, O Código Élfico é um romance longo (talvez, um pouco mais longo que o necessário), mas que possui liga de trama, no geral. E no fim, a trama consegue se resolver de modo apenas satisfatório. Possui clara influência de jogos de RPG, tem muitas ideias legais, mas qualidade da trama oscila um pouco, com alguns capítulos muito melhores do que outros. No frase a frase, parágrafo a parágrafo o escritor se mostra muito competente. Há muitas passagens que entretêm o leitor. Descreve bem os personagens, locações, ação, etc. É na hora de ligar tudo numa trama fluida é que deixa um pouco a desejar.

Ainda assim, recomendo a leitura do livro para aqueles desejosos de saborear uma narrativa fantástica recheada e ação, que passeia por múltiplos gêneros, que foge aos padrões (mais comportados) e que tem um bom toque de brasilidade.

Para uma segunda opinião sobre o livro, recomendo a resenha do Newton Nitro, texto que me motivou a comprar e ler este livro.

 

2.5 / 5 stars     

Anteriores

O Arqueiro – Bernard Cornwell

Próximo

Retrospecto de 2014

  1. Massa a sua visão. Interessante a sua posição sobre os elfos, a maldade deles foi uma das coisas que mais curti no livro, naquele esquema de que sabedoria sem empatia leva a sociopatia, racionalizando a crueldade. E adorei a mistureba de gêneros. Devo em breve começar a leitura da trilogia Bas-Lag, do China Miélville, aue é referência para essa linha do New Weird. Talvez vc curta mais os outros livros do Caldela, que são mais na linha da fantasia medieval, recomendo todos. 🙂

    • Carlos

      Quanto a questão dos elfos, tudo bem um pequeno grupo, ou mesmo uma seita ir para esse lado mais macabro, mas a sociedade como um todo, acho um pouco difícil. Em especial para aqueles que se dedicam tanto à filosofia… Existe uma conclusão básica e em comuns em todas as filosofias/religiões. São as relações de causa e efeito, você faz o mal, depois acaba recebendo este de volta. Se ao menos eles fossem alienados, como ocorre com muitos grupos de nossa sociedade, daria para aceitar com um pouco mais de facilidade.

      Vou procurar outros livros do Caldela, acho que ele escreve bem, apesar das reservas em relação a este romance, em específico. Vou ver se leio algum no China Miélville nas férias… Valeu pelo comentário!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén