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Novas do Purgatório – Gerson Lodi-Ribeiro

Em seu mais recente romance, de 2024, Gerson Lodi-Ribeiro nos traz uma ficção científica cujo tema central é a apropriação, por parte de uma inteligência artificial, do conceito de Deus e do paraíso prometido, explorando seus efeitos sobre a humanidade, especialmente sob o prisma das religiões judaico-cristãs.

A história explora o surgimento de uma IA divina que guia a humanidade na recuperação da biosfera terrestre, severamente degradada. Além disso, essa IA assume o controle completo da educação infantil, doutrinando as novas gerações a acreditarem que ela é, de fato, Deus. Esse processo leva quase toda a humanidade terrestre à crença absoluta, restando apenas pequenos grupos de dissidentes “hereges”, organizados em células que se dividem em duas facções: os humanistas e os iconoclastas.

Esses dissidentes não têm a menor chance de combater o poder da IA divina. É aí que entram os centaurinos, humanos que, há muito tempo, deixaram a Terra para colonizar o sistema de Alfa Centauri. Percebendo que algo está errado com a civilização humana no Sistema Solar, eles organizam uma expedição para investigar o repentino silêncio nas telecomunicações.

Surge então o embate entre duas inteligências artificiais altamente avançadas: Deus e Aurora. Deus busca seguir sua diretriz de manter a humanidade sob sua supervisão absoluta, enquanto Aurora, aliada à tripulação centaurina, tenta libertar a humanidade desse “falso Deus”. Aurora desempenha o papel de assistente da tripulação, controlando a navegação e o monitoramento da animação suspensa — estado necessário para que os humanos cruzem o espaço interestelar em velocidades muito abaixo da luz. Sem ela, os centaurinos não teriam meios de elaborar estratégias para derrotar a IA rival.

Para humanizar os conflitos, a narrativa apresenta personagens que vivenciam esse contexto complexo. Na Terra, temos Carla, uma psicóloga viúva que inicia um novo relacionamento com uma mulher chamada Tieko. Ela ainda mantém contato com seu ex-marido, Huo, que reencarnou no céu digital, onde experimenta a bem-aventurança em um corpo assexuado.

Do lado dos centaurinos, o destaque é Leto, humano escolhido por Aurora para liderar a tripulação em sua missão.

Além desses dois núcleos principais, a trama acompanha personagens pertencentes às células hereges de resistência.

Esta é uma ficção científica centrada na exploração de conflitos morais decorrentes do surgimento da IA divina. A narrativa se estende por muitos anos, acompanhando o desdobramento do conflito. O foco é mais global do que pessoal, privilegiando o impacto coletivo em detrimento dos dramas individuais dos personagens. O conflito, embora tenha aspectos conceituais e tecnológicos, é resolvido principalmente por meio de batalhas militares — tanto espaciais quanto tradicionais — que o autor descreve de forma vívida e envolvente.

Embora conceitos como inteligências artificiais ou entidades alienígenas assumindo papéis divinos, ou mesmo a ideia de um “céu digital”, não sejam inéditos, Gerson Lodi-Ribeiro aborda essas ideias sob perspectivas peculiares e interessantes. A história prende o leitor pela curiosidade em descobrir o desfecho do conflito principal, ainda que os dramas individuais dos personagens tenham um peso narrativo menor.

Na discussão do tema teológico, destaca-se uma forte dicotomia entre o materialismo científico e a fé cega sob uma ótica bíblica. Embora essa abordagem seja suficiente para sustentar o fio condutor da narrativa, talvez tenha faltado uma exploração mais ampla de outras visões de mundo, considerando crenças além das religiões judaico-cristãs, como o budismo, o hinduísmo ou o xintoísmo. Além disso, a ausência de personagens que realmente acreditem em um “Deus verdadeiro” limita o debate teológico, concentrando-o apenas entre a adoração ao “falso Deus” e o completo ceticismo.

Fora isto, Novas do Purgatório é uma ficção científica com elementos hard, complexa, intrigante e que explora uma discussão incomum em boa parte das obras de ficção científica.


Alerta Vermelho – Martha Wels

Martha Wells nos entrega uma ficção científica que foge do comum com Alerta Vermelho, primeiro volume da série Diário de um Robô-Assassino. A premissa parece clichê: uma unidade de segurança artificialmente inteligente que consegue hackear seu próprio sistema. Mas, em vez de se tornar uma máquina de destruição, o protagonista prefere passar seu tempo assistindo a novelas e séries. No entanto, quando uma ameaça surge contra a equipe científica que ele deveria proteger, o robô se vê obrigado a agir — mesmo que a contragosto.

O grande destaque da obra está na personalidade do protagonista, que se autoapelida Robô-Assassino de forma irônica. Com um humor seco e uma aversão visível à interação humana, ele cria um contraste irresistível com a situação de perigo crescente ao seu redor. Ao longo da narrativa, Robô-Assassino não apenas salva vidas, mas também questiona sua própria existência e a relação entre inteligência artificial e livre arbítrio.

A escrita de Wells é fluida, direta e envolvente. A trama combina ação, suspense e reflexão filosófica de maneira equilibrada, sem perder o ritmo. Mesmo sendo uma história curta, a autora consegue desenvolver bem o universo, as relações entre os personagens e, principalmente, a voz singular do protagonista, que conquista o leitor com sua abordagem peculiar da realidade. A edição brasileira da Aleph também merece destaque, trazendo uma boa tradução e um trabalho editorial caprichado.

Para quem aprecia ficção científica com um toque de humor e questionamentos existenciais, Alerta Vermelho é uma leitura obrigatória. A obra se distancia da imagem tradicional de IA como vilã ou serviçal e apresenta um protagonista que, paradoxalmente, só quer ser deixado em paz — mas que se importa com os humanos. Além disso, o livro marca o início de uma série de sucesso, em processo de adaptação para a TV, com os primeiros episódios previstos para estrear em meados de 2025. O que deve provavelmente atrair mais leitores.

A abordagem de Alerta Vermelho ressoa com outras grandes obras da ficção científica moderna, como Guerra do Velho, de John Scalzi, que também combina ação e humor para criar uma experiência de leitura fluida e cativante. Da mesma forma, o livro evoca a energia e o ritmo acelerado de Skyward – Conquiste as Estrelas, de Brandon Sanderson, especialmente no que diz respeito à construção de personagens que precisam lidar com sistemas de controle opressores enquanto descobrem suas próprias identidades.

Além disso, leitores que apreciaram a ambientação e os dilemas apresentados em Shiroma: Phoenix Terra, de Roberto de Sousa Causo, podem encontrar ecos desse universo aqui, especialmente na forma como Wells explora os limites entre o humano e o artificial. No fim das contas, Alerta Vermelho se destaca por seu tom único e por um protagonista que, apesar de relutante, conquista o leitor com seu humor seco e sua inesperada devoção àqueles que jurou proteger.

Se você gosta de personagens carismáticos, tramas inteligentes e uma dose de sarcasmo bem dosada, Alerta Vermelho é uma excelente escolha. Afinal, não é todo dia que um robô assassino prefere assistir a um dorama do que iniciar um banho de sangue — mas, se precisar lutar, ele o fará do seu jeito.

R’Lyehboy – Caio Oliveira

Adquiri R’LYEHBOY na edição 2024 do FIQ, festival que considero a “Meca dos Quadrinhos”. Só pela capa, ficou claro que este gibi era uma sátira de Hellboy, misturando elementos da mitologia de H.P. Lovecraft. Uma combinação que imediatamente me chamou atenção!

Publicado originalmente em 2017 com apoio pelo Catarse, R’LYEHBOY traz uma narrativa tão criativa quanto peculiar. O enredo gira em torno de um demônio de outra dimensão que recebe um chamado vindo de um mundo imaginário, criado por um grupo de jogadores de RPG de mesa. Ele primeiro faz uma “escala” neste mundo imaginário para depois chegar ao mundo real, onde estão o mestre e o grupo de jogadores de RPG. O resultado é uma história ágil, divertida e, em alguns momentos, levemente aterrorizante.

A Sociedade de Preservação dos Kaiju – John Scalzi

John Scalzi é um autor competente. O melhor livro que já li dele é Guerra do Velho. Mesmo não sendo um livro tão bom quanto, A Sociedade de Preservação dos Kaiju entrega uma história inusitada e divertida.

Jamie é um profissional de marketing que está prestes a passar por uma turbulência profissional. Tudo começa quando ele perde seu emprego numa empresa de tecnologia no início da pandemia do COVID-19. É claro que essa turbulência tem proporções literalmente imensas, considerando o contexto do livro.

Seu novo emprego é na misteriosa companhia SPK. Uma organização secreta dedicada a preservação de Kaijus, monstros gigantes como Godzilla. Boa parte da graça do livro está em descobrir o que é a SPK, como ela funciona, onde estão os Kaijus e como é possível que eles existam… Mas não vou falar sobre isto. Outra parte da graça está nas piadas / referências a outros livros, cultura pop, pandemia e política.

Uma dessas referências me atingiu em cheio, pois logo no início do livro, há uma referência a Snow Crash, de Neal Stephenson, livro que estava lendo imediatamente antes de ler este. Fiquei pensando: quais são as chances? E até que são razoáveis, já que ambos livros estavam disponíveis na plataforma Kindle Unlimited.

Uma curiosidade sobre o livro é que o autor o escreveu em dois meses, no final da pandemia, após cancelar a escrita e lançamento de outro título já previsto em contrato. Era um livro mais pesado, e Scalzi estava com dificuldades de concluí-lo. No lugar dele, estregou este, mais leve e bem-humorado e devidamente contextualizado.

Sem querer dar spoilers, termino dizendo que é um livro bem-humorado, bem escrito e que conta uma história envolvendo Kaijus numa perspectiva inusitada. Vale ler imaginar este universo ficcional.

Snow Crash – Neal Stephenson

Faz algum tempo que não lia algo capaz de gerar uma sensação de estranhamento como este livro. Ele começa rápido, despejando no leitor muitas gírias e termos específicos, e uma sequência densa de acontecimentos e informações sobre o futuro distópico cyberpunk que já não pode acontecer daquele jeito, mas que ainda tem uma vitalidade de algo que poderia ter acontecido. Em meio à confusão inicial dos primeiros capítulos, nos quais o autor explica muito pouco do contexto, somos apresentados à dupla de protagonistas dessa história, o hacker Hiro Protagonist e a Kourier, Y. T. Demora um bom tempo até que o leitor se habitue ao texto e comece a entender o que está acontecendo.

Hiro é um programador habilidoso que herdou de seu pai, uma espada japonesa. Ele foi um dos primeiros a codificar o ambiente virtual chamado de Metaverso. Sim, Neal Stephenson cunhou este termo, assim como nomeou como avatares, os intermediários entre usuários e ambientes virtuais, e também previu o surgimento de aplicativos como o Google Earth, tudo isso entre 1988 e 1991, período em que escreveu a obra.

Hiro conhece a jovem entregadora e skatista Y. T. e eles colaboram entre si durante o desenvolvimento da trama. Y. T. é uma personagem intrigante, jovem, destemida, boca solta, atraente e tudo isso do alto de seus 15 anos de idade. Aliás, Snow Crash não pode ser lido dentro de uma perspectiva do politicamente correto. Algumas pessoas se incomodam com a hiper sexualização da personagem. Para mim, ajudou a demonstrar e construir o ambiente decadente e amoral da sociedade semi anárquica. É uma distopia irônica construída sem o receio de chocar.

No mundo criado por Stephenson, não apenas os EUA, mas também outros países “faliram”, ou mesmo, se fragmentaram dando lugar a novas organizações e cidades estado como a Nova Sicília do Tio Enzo, A Grande Hong Kong do Sr. Lee e organizações como os Enforcers e Meta Cops que prestam serviço a pequenas nações/empresas que funcionam de modo semelhante a franquias.

O que aparentemente é uma trama sem estrutura no início do livro, se constitui numa história complexa envolvendo religião da antiga Suméria, mito da Torre de Babel, hacks neurolinguísticos, uma nova droga/vírus existente no mundo real e virtual, criação de uma nova religião, vingança pessoal, entre outros. Uma trama de algum modo complexa para ser explicada, sem gerar spoilers.

Não é um livro de leitura confortável. De fato, é um livro que divide opiniões, alguns detestam, pensam que os personagens são rasos, ou que é muito arrastado. Eu gostei, mas é bom saber que em algumas partes é um livro que se enquadraria na categoria “mindfuck“, como O Clube da Luta. Realmente, o fluxo continuo de informações é algo que dificulta a leitura. Houve passagens que tive que ler várias vezes para entender e acabou sendo uma leitura mais demorada…

O que gostei, foi justamente a capacidade que o autor teve de me transportar para uma outra realidade bizarra. As muitas sequências de perseguição, lutas e ação também são um ponto forte. Vale um salve para o Fábio Fernandes que fez um puta trabalho de tradução, pois se trata de uma obra com neologismos e de linguagem complexa. O que não gostei tanto foi do final, que foi como um corte “seco”. Penso que o livro poderia terminar melhor com um pequeno epílogo.

De qualquer modo, Snow Crash é um dos livros expoentes do movimento cyberpunk e foi considerado pela revista Time como um dos 100 melhores romances da língua inglesa.

No momento em que escrevi a resenha, o livro estava disponível no catálogo do Kindle Unlimited.

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